As narrativas de fantasia épica têm sido cada vez mais instrumentalizadas por extremistas de direita e supremacistas brancos nas últimas décadas. Aconteceu com “O Senhor dos Anéis” e está acontecendo com “The Man in the North”, filme do americano Robert Eggers lançado agora que tenta recriar a atmosfera do mundo viking, retratando a Islândia há mais de mil anos.
Não é difícil entender por que a direita raivosa e racista gosta de se apropriar desse tipo de história. Para começar, as tramas e personagens são muitas vezes inspirados nas mitologias do norte da Europa – geralmente as da Escandinávia, mas às vezes também as de povos celtas, como os galeses e irlandeses -, retratando culturas supostamente puras e livres de qualquer influência “não branco”.
Seus personagens masculinos representariam um ideal descomplicado de coragem marcial e resistência indomável ao inimigo, sem dúvida um prato cheio para quem quer se matricular em um clube de tiro. E as mulheres nessas narrativas costumam exibir beleza padronizada e longos cabelos loiros que reforçam o estereótipo da pureza européia.
Pelo menos alguns dos lunáticos que invadiram o Congresso dos EUA logo após a eleição de Joe Biden em janeiro do ano passado se encontram representados nesses elementos.assim como os “Tupinivikings” brasileiros que aderiram ao bolsonarismo – durante a campanha eleitoral de 2018, por exemplo, surgiram memes comparando Jair Bolsonaro a Faramirpersonagem heróico e abnegado de “O Senhor dos Anéis”.
Para que tais histórias funcionem como um simples roteiro ideológico para esses grupos, porém, é preciso ignorar a complexidade e a ambiguidade presentes nelas. É nesse ponto que “O Homem do Norte” pode, ironicamente, funcionar como uma ferramenta para desmantelar os contos de fadas supremacistas, pois o filme deixa claro que não havia nada de “europeu” nos guerreiros loiros e peludos de era dos vikings.
A afirmação pode parecer maluca, mas esse é exatamente o resultado da pesquisa detalhada realizada pela equipe de Eggers durante a produção do longa. O diretor contou com a ajuda de alguns dos principais arqueólogos que estudam a Escandinávia medieval, como o britânico Neil Price, da Universidade de Uppsala, na Suécia, para reconstruir o cotidiano e o modo de pensar dos nórdicos no século IX dC.
O apego quase obsessivo a essas referências trouxe para a tela uma cultura que lembra muito mais, digamos, os Tupinambás que dominaram o litoral brasileiro nos anos 1500 do que qualquer sociedade que hoje classificaríamos como europeia.
De fato, as estruturas tribais escandinavas dessa época, com seu apego a códigos de vingança, sua religião fortemente influenciada pelo xamanismo – incluindo a crença de que certos guerreiros podiam se identificar espiritualmente com lobos, corvos e ursos – e sua anarquia política não poderia ser mais longe da suposta defesa da “cultura ocidental” feita pela extrema direita hoje.
Sem falar, é claro, dos supostos “valores cristãos” dos ideólogos de hoje. No filme, os personagens cristãos aparecem apenas como escravos dos escandinavos, sendo acusados de cultuar cadáveres torturados, uma forma plausível de imaginar como um viking pagão veria um crucifixo.
Em suma, o protagonista Amleth e os outros vikings em “The Man in the North” claramente não se consideram “ocidentais”, “europeus” – e talvez nem mesmo como “brancos”. Seu horizonte cultural é muito mais estreito, peculiar e difícil de conceber com a mente do século XXI. E também é irônico que a amada do protagonista seja uma serva de origem eslava, enquanto boa parte das teorias racistas dos séculos 19 e 20 consideram os povos eslavos uma “raça inferior”, atrasada e indigna de ser considerada 100% europeia. Hitler não gostou disso.
Finalmente, qualquer um tentado a ver o filme como uma glorificação da violência masculina precisa deixar de lado o fato de que a vingança implacável desencadeada por Amleth é essencialmente fratricida e autodestrutiva. É significativo que a extrema direita se reconheça nesse tipo de espelho.