- Shin Suzuki
- Da BBC News Brasil em São Paulo

Crédito, Imagens Getty
Gilberto Gil está prestes a completar 80 anos. Se números cheios costumam motivar comemorações e oscilações, para o cantor não adianta “marcos rígidos”.
À sua maneira, explica que “anteontem e ontem pesam tanto quanto hoje e as expectativas de amanhã”.
De qualquer forma, a data (26 de junho) não será passada na tranquilidade de casa: a cantora abre uma turnê europeia de 40 dias como principal atração de um festival no norte da Alemanha.
O passeio, intitulado nós as pessoasreunirá quase 40 pessoas da família Gil, entre músicos, técnicos e convidados da banda.
As apresentações e a convivência com filhos e netos serão o pano de fundo para uma série de streaming na Amazon.
Recentemente empossado como imortal na Academia Brasileira de Letras e homenageado com doutorado honorário da Berklee College of Music — uma das mais prestigiadas universidades de música do mundo — Gil diz à BBC News Brasil que a próxima turnê terá seus desafios.
“É inédito no sentido de ter toda a família. Portanto, as questões de administrar um grupo tão grande são novas.”
O cantor conta ainda que, apesar de quase 60 anos de carreira, desenvolveu um “certo nervosismo” e uma “dimensão um pouco angustiante” em se apresentar ao vivo.
“Eu acho que é apenas envelhecer.” Explica que a falta de confiança “na dimensão do rendimento físico, da qualidade atlética” traz “novas preocupações, que implicam um certo aumento do nervosismo”.
Em meados da década passada, Gil enfrentou uma série de internações por problemas renais que geraram temores sobre sua saúde. Ele intercalava seus períodos no hospital com outros no palco para uma turnê com Caetano Veloso.
‘Como viver… a morte’
Nos shows da época, incluiu no repertório uma faixa bem direta sobre a mortalidade: não tenho medo da morte.
“Ela medita sobre essa questão, sobre as reações mais íntimas possíveis, as mais individuais possíveis, sobre um medo de toda a humanidade, de todos os indivíduos, que lidam até certo ponto com essa questão da finitude”, explica.
Na letra, o compositor diz que não tem medo da morte em si, mas teme seu momento e contexto. “É… acho que uma das perguntas básicas das pessoas é o verbo morrer, mais do que o substantivo ‘morte’. É o ato de morrer, ou como viver… a morte. [risos].”
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Numa altura em que enfrentava problemas de saúde, Gil alternava períodos no hospital com outros em palco para uma digressão com Caetano Veloso.
Segundo ele, “o frescor geral da condição existencial” se mantém por meio das relações pessoais.
“Isso ocorre com todos os processos naturais de cuidado com a sua existência. Vivendo os modos de viver, tudo o que envolve o seu viver. A começar pelo círculo familiar e os vários outros círculos que o envolvem em termos humanos”, diz a cantora. .
“É a própria obrigação da vida que me faz ficar ciente de tudo o que está acontecendo.”
Isso aparece em sua análise da produção musical recente. Ele vê no K-pop “jovens coreanos que se tornaram intérpretes extraordinários neste campo da pós-modernidade musical”, conceito que também aplica ao som de Anitta.
A seu ver, o pop atual, em que novos países e línguas ganham evidência e sucesso, tem uma característica “fragmentária, não linear”, de não se prender à rigidez dos gêneros.
“Anitta usa elementos díspares. A dosagem de tudo que ela faz tem um pouco disso, um pouco daquilo: samba, bossa nova, pop brasileiro, rock and roll e rap.”
“É importante não esquecer que eu pertenço ao tropicalismo. Então toda essa complexidade, toda essa variedade de impulsos, sentidos e direções já foi proposta e prevista pelo tropicalismo.”
Gil também fica de olho nas mudanças tecnológicas que impactam o mundo, uma constante em seu trabalho.
No álbum mais recente de inéditos, OK ok ok (sem contar a trilha sonora do Grupo Corpo de Dança), o tema era a ânsia de opinar sobre qualquer coisa nas redes sociais.
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Gil com Anitta e Caetano em show na cerimônia de abertura das Olimpíadas Rio 2016
Antes, ele já havia escrito letras de mais entusiasmo com as possibilidades da web (Através da internet) e também de desconfiança com o que significava conquistar a Lua (lunik 9) e a chegada da inteligência artificial (Cérebro Eletrônico).
Para o compositor, algumas esperanças de melhorar o mundo representado pela tecnologia não se concretizaram.
“Está ficando complicado. Uma expectativa mais positiva que tínhamos antes está derretendo um pouco. Você tem que encarar uma realidade muito mais complexa do que esse sonho.”
Há uma preocupação com a forma como o celular e a internet se enraizaram no cotidiano de todos: “Tem a família, os filhos, como administrar o acesso a eles. Esse novo ingrediente que faz parte da educação, que antes não tinha, de educar as crianças para este mundo cibernetizado”, diz.
“É difícil administrar como é sentar à mesa, a que horas comer, a que horas sair, a que horas jogar, a que horas dizer a verdade na internet… a que horas mentir [risos].”
Bolsonarismo é ‘contra a inovação’
Por sua vez, Gil está mais otimista com a tensão política que hoje domina o Brasil.
“Acho que a apreensão é um ingrediente entre tantos outros. A expectativa positiva é um deles, de que tudo leve ao fortalecimento da democracia, a uma compreensão mais ampla da mudança, da transitoriedade.”
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Gil em 2004 quando era Ministro da Cultura
Ele justifica o raciocínio pelo que observou durante o século 20, quando “foram derrubadas várias barreiras sérias ao desenvolvimento humano” em que “foi derrubado o nazismo, derrubado o comunismo em seus aspectos mais nefastos, o desejo de uma sistematização democrática mais efetiva” .
Ex-ministro da Cultura, cargo que ocupou durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o cantor vê o bolsonarismo como um movimento “contra a inovação, contra a novidade, contra o surpreendente”.
“É a busca dessa estabilidade conservadora que o bolsonarismo representa. Representa um contingente considerável de mentes e corações que trabalham com esse tipo de visão, expectativa, esperança em um mundo velho, em um retrocesso: ‘Temos que regredir para nos salvar ‘.”
Ele diz que não aceitaria voltar à política se convidado. “Não, não tenho mais energia para isso. Sou um homem velho e tenho que respeitar minha velhice.”
Além de ministro da Cultura, Gil também foi vereador em Salvador pelo PMDB (atual MDB) e PV no final dos anos 1980. Com a carreira política encerrada, o que você tira da experiência?
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Gilberto Gil durante apresentação na França em 1986
“Que é um campo de jogo complexo, como todos os outros, onde você tem que lidar com prioridades que muitas vezes são difíceis de encontrar. Você tem que fazer escolhas, estabelecer critérios para fazer escolhas, e esses critérios são gelatinosos. “
Discriminação racial
Outro complexo campo de atuação no Brasil enfrentado por Gil foi a questão racial. Mas continua otimista (“em geral, as coisas estão avançando”), embora no dia da entrevista o noticiário tenha destacado a expulsão do vereador paulista Camilo Cristófaro do PSB por discurso racista.
“Antes não existiam notícias assim. Os brancos exerciam sua hegemonia silenciosamente, calados, sem nenhuma perturbação. Até pouco tempo atrás, eles escravizavam, massacravam, matavam, faziam o que queriam sem ninguém dizer nada. Agora não, agora as vozes são divididos, são compartilhados.”
Ele relata que teve um despertar relativamente tardio para a identidade negra, para o sentimento de negritude.
“A distinção de raça para mim só veio a partir da adolescência. Até então eu vivia em uma família de classe média, pequeno-burguesa, mãe professora, pai médico, figuras importantes em microsociedades onde o racismo não era nada, não existir.”
Foi na adolescência em Salvador e na juventude em São Paulo — onde trabalhou na empresa Gessy Lever após se formar em administração — que Gil viveu episódios abertamente racistas.
“Sofri discriminação de alguns colegas e de alguns professores. Manifestações negativas em relação à minha presença nas salas de aula e coisas assim.”
“Já depois de casado, no começo da minha vida adulta com 22, 23 anos, em São Paulo, tive que lidar com questões como aluguel de apartamento, casa para morar. discriminação aqui e ali.”
Episódios que certamente despertaram a raiva interior de Gil, alguém que já se definiu como dono de “uma aura de mansidão” e cuja imagem pública está associada à serenidade e ao esotérico.
‘A raiva não me interessa’
A cantora em entrevista à BBC News Brasil, via Zoom
“Canalizar a raiva, o ódio e as sensações difíceis e negativas sempre foi feito na condição oposta, sempre buscando serenidade, calma, tranquilidade.”
Ele diz que esses estados são “aquisições, coisas desejadas” e que se obrigou a analisar seus sentimentos: “Pensei ‘ah, isso é raiva, não me interessa muito, não vai me ajudar muito'”.
Segundo a cantora, alcançar a serenidade é um trabalho árduo.
“Esse levantamento, esse levantamento do chão, essa superação da gravidade que coisas como a meditação proporcionam é trabalho, é o resultado desse trabalho, de você procurar ‘subir aos céus sem cordas para se segurar'” — como o verso de Se eu quiser falar com Deus.
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